Um desvio da admiração

Comportamento
16.out.2018

Que relação poderia existir entre a admiração e a inveja? Alguém já assistiu ou vivenciou casos de relacionamentos que começaram com uma admiração profunda de uma das partes pela outra e terminou em inexplicável aversão? De minha parte, já vi este enredo se repetir inúmeras vezes.

Uma boa forma de começarmos a entender o “fenômeno,” seria reparar no que acontece quando o modelo de nossa admiração está distante e quando está perto de nós. Se, por exemplo, admiramos um ídolo esportivo ou artístico, que vive em outro mundo que não o nosso, nossa chance de entrar em choque com ele é praticamente nula. Se, em vez disso, o modelo de nossa admiração e identificação está próximo de nós, tem conosco uma relação concreta e as coisas que ele aprecia e deseja são as mesmas que, através de seu exemplo, aprendemos a desejar, então o conflito tem boas chances de vir a acontecer…

Quem me lê poderia dizer: “mas, como assim, não se pode simplesmente admirar alguém em paz? Se admiro alguém, então vou invejar este alguém??” Não é isto que abordamos aqui. É claro que existem formas de amor e de identificação não invejosas. Nós as vemos no amor dos pais pelos filhos, nos namoros, nas amizades e, sim, também na relação com ídolos e amigos carismáticos. Estamos falando apenas de alguns casos “desviantes”, que ocorrem quando a trajetória do afeto de um relacionamento é invertida. E como isto acontece?

Por exemplo, acontece quando alguém tem um amigo carismático, e o admira tão profundamente, que chega a considerá-lo muito mais inteligente, interessante e merecedor do que ele mesmo. Pensando em seu ídolo, a pessoa identifica-se tanto com ele, que acha que são como “parte um do outro”. Sente-se, assim, enriquecida com a energia de seu “ídolo”, acredita participar de sua força e vê-se inserida na aura positiva do outro. Um indivíduo se enriquece, ao idealizar um outro, porque, na percepção do admirador, não há separação entre eles dois. Se cresce o brilho do idolatrado, cresce também o de quem o idolatra. Um é parte do outro, enquanto se acredita ser possível obter a própria essência do ser idealizado. As diferenças percebidas são consideradas pequenas e não incomodam, ao contrário, só impulsionam o desejo de ser como o outro. Nesse universo, não há mesmo lugar para a inveja.

A inveja só dará o ar de sua graça no momento em que fica evidente a separação que existe entre quem admira e o admirado. “Não somos um só!” conclui um dia, consternada, a mente do admirador.  A partir deste momento, aquela relação amorosa de admirador para admirado se torna inviável. A inveja se manifesta aí, pontualmente, onde a “fusão” se interrompe.

Detalhe: não há nenhuma razão interna que justifique a transformação de uma admiração adoradora em rivalidade invejosa. É como se fosse um “insight”, dá-se de uma hora para a outra e, por isso, sempre atinge o invejado, que até então era tão admirado, de surpresa. E, justamente por ser tão inesperado, o ataque invejoso sempre dói. É por isso que os estudiosos ensinam: o ataque inexplicável de alguém próximo, que te pegou de surpresa e doeu muito, foi um ataque invejoso.

Por outro lado, os estudiosos do assunto também afirmam que, para este “novo invejoso”, o sofrimento se dá pela perda de um mundo que não lhe pertence mais. A pessoa se sente agora uma entidade isolada, à procura de sua essência, de seu fundamento, de seu valor. E é assim que invejosos passam a não suportar ouvir falar do sucesso de seu antigo ídolo. Porque, quando caímos em poder da inveja, tornamo-nos incapazes de reconhecer qualquer valor naquele que antes tanto admirávamos.

Mas, deixemos claro: felizmente, isto é só um acidente de percurso, não é a regra. Mas que acontece, acontece.

assinatura_simone

 

 

Artigos relacionados

17 fev

Das pesquisas e dos preconceitos

Fala-se muito, hoje em dia, de casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Muitos ainda discutem se isto “pode” ou “não pode” acontecer… Um grupo de cientistas da Universidade de San Diego, Califórnia, já está muito à frente desse debate. Há 12 anos, iniciaram um estudo comparativo entre casais heterossexuais e homossexuais, patrocinado pelo NIH (National […]

  • 821
Comportamento
12 jul

Estresse e doenças

Volta e meia ouvimos alguém tentar explicar o surgimento de uma doença grave. Palpites do tipo “ele estava deprimido” ou “ela teve um grande aborrecimento” são frequentes quando as pessoas se referem a quem foi acometido por uma doença grave. Uma antiga polêmica diz respeito ao papel do estresse como fator capaz de desencadear o […]

  • 2058
Comportamento
17 maio

Alegria ou felicidade?

Todo mundo já andou pensando nas diferenças entre alegria e felicidade, não é? A conclusão passa sempre pela ideia de que a felicidade está relacionada a um estado de satisfação durável e que, supostamente, devemos ter motivos para ser felizes. Quanto à alegria, entendemos que ela surge pontualmente e sem motivo aparente. Um contato mais […]

  • 2010
Comportamento