O ciúme e o amor, ontem e hoje

A Dois
12.jan.2016
Já reparou que, hoje em dia, o ciúme é um sentimento que anda banido, sendo quase proibido mencioná-lo? Se alguém o faz, passa uma ideia de atrasado, primitivo e politicamente incorreto. Na melhor das hipóteses, a menção ao ciúme soa inadequada, indicando no mínimo falta de bom gosto. No pior dos cenários, dá a impressão de tratar-se de um sentimento vergonhoso, quase obsceno. Quem constatou isto de forma mais precisa foi a pesquisadora e filósofa italiana Giulia Sissa, que concluiu que este sentimento está prestes a ser classificado simplesmente como patológico. É muito interessante algo que a estudiosa observou: os que se referem ao ciúme falam dele no passado: eram ciumentos, mas não são mais, “graças a Deus”…

Na maior parte dos casos, entretanto, o ciúme não é patológico, ou seja, sua origem não é fruto de um delírio nem de uma alucinação. Trata-se apenas do reflexo de um momento de lucidez, o sinal do surgimento da realidade no cerne de uma relação amorosa. De repente, inesperadamente, alguma coisa como um texto, um e-mail, uma conversa telefônica, instalam a dúvida, demolindo a certeza que alguém tinha de de ser o único objeto de desejo do outro…

O ciúme traz consigo, portanto, e sobretudo, a falência da convicção de sermos amados por sermos quem somos, em nossa individualidade única. Ele nos faz duvidar que possamos ser aquele “tudo” para o outro, como o outro é para nós. Há quem defenda a ideia de que o ciúme seria até um sentimento “libertador”, já que insere na relação a figura do outro, um terceiro, que a paixão amorosa tende a excluir. O ciúme afastaria a fantasia de fusão, a tendência dos apaixonados de transformar dois em um só.

Em oposição à vaidade, e à complacência consigo mesmo, o ciúme acaba por trazer à tona as dúvidas e fragilidades de todos nós. Atinge-nos com força em nosso narcisismo e, por vezes, nos faz sofrer muitíssimo.

É sobretudo por isso que hoje em dia o ciúme não tem boa reputação, afirma a pesquisadora: ele acaba com a figura do indivíduo moderno, inflado de autoestima, arrogante e cheio de si. Mas aquele ciúme devorador que costumava inflamar, incendiar, Giulia lembra que, na Grécia antiga, era uma paixão nobre e exaltada, digna dos deuses, dos guerreiros e dos reis. Como os tempos mudam…

A esta altura, vemos que Freud não estava equivocado ao afirmar que o ciúme é um sentimento inevitável, inerente ao ser humano. Em um pequeno texto, ele explica que o ciúme pertence aos “estados afetivos”, e que seria legítimo, como em relação ao luto, qualificá-lo como normal. Para Freud, o ciúme estaria associado às nossas próprias fantasias de traição, e seriam o desejo e a possibilidade virtual de trair o parceiro que engendrariam em cada um o próprio ciúme. Assim, os mais ciumentos seriam, eles próprios, os que teriam mais chance de trair…

Para completar o já rico quadro de especulações, não podemos esquecer aqueles que necessitam perceber que seu parceiro/a é desejado por outros. Para estes, é quando sentem que seu par é notado que seu desejo sexual aumenta. A favor desta tese, fala o filósofo René Girard, ao afirmar que o ser humano jamais escolheu por si mesmo aquele ou aquela que deseja e sim alguém que um outro, um terceiro, cobiça. Verdade a gente não sabe se é, mas que ninguém gosta de ver ou saber que o ex está com alguém, é fato. Parece que o antigo interesse se reacende, causando certo desconforto…

Viu só?? Antes de sair de moda, o ciúme levou muitos pensadores a se ocuparem de tentar entendê-lo. Sendo tão humano e antigo, deve continuar entre nós, um pouco mais camuflado, talvez… Mas será mesmo possível excluí-lo da normalidade?

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