O feminino e a maternidade

Mulher
08.mar.2016

Durante um bom tempo escreveu-se sobre o “instinto materno”. A expressão hoje foi abandonada, mas uma edição dos anos 1970 da famosa enciclopédia Larousse ainda o descrevia como sendo “uma tendência primordial que cria em toda mulher normal um desejo de maternidade e que, uma vez satisfeito esse desejo, incita a mulher a zelar pela proteção física e moral dos filhos”. Por esta conceituação, a mulher que não se sentisse compelida a ter filhos, seria “anormal”. Em que consistia e o que sustentou a crença neste conceito, até tão recentemente?? Para responder à questão, precisamos retroceder um pouco no tempo.

A grande mudança começou quando, lá pelo final do século XVIII, Rousseau, pensador francês dos mais respeitados, apresentou à sociedade o conceito de que a mulher não teria sido feita para si mesma e sim, para agradar ao homem. Ele defendia a ideia de que as mulheres deviam receber educação, desde que elas “estudassem” apenas o que as ajudasse a, futuramente, conduzir bem a administração da casa. E também a encontrar, no ambiente doméstico e na criação dos filhos, a glória e o prazer de sua existência.

Aos poucos e a partir de então, a maternidade tornou-se um atributo tão essencial à identidade feminina quanto a conjugalidade. No século seguinte, a maternidade já é concebida como uma espécie de sacerdócio, uma experiência feliz, mas que implica necessariamente em um verdadeiro e total sacrifício de si para as mulheres. Pensadores da época acatavam com naturalidade essa tese, pois havia então total sintonia entre o que se considerava a “natureza da mulher” e a maternidade. As mulheres, por sua vez, aceitaram com disposição a nova identidade, pois perceberam que, graças às responsabilidades crescentes como mães, a esposa passaria a poder impor-se mais ao marido. Com a valorização da maternidade, a “nova mulher” da época deixa de ser mais uma, entre as crianças que ele, o patriarca, precisava proteger e governar.

Mas voltando ao instinto materno: embora hoje se tenha transferido o conceito para os animais, a ideia ainda dá sinais de que permanece entre nós. Parece ter persistido uma noção um tanto distorcida do amor materno, cuja descrição ainda apresenta, muitas vezes, enorme semelhança com o antigo conceito abandonado. Passamos a dizer que o amor materno é tão forte e presente que certamente deve algo à natureza. Aqui, o que se faz é apenas mudar o vocabulário, conservando-se as ilusões. Em resumo: o amor materno foi por tanto tempo concebido em termos de instinto, que ainda hoje muitos de nós acreditam, preconceituosamente, que tal sentimento faça parte da natureza da mulher.

Só que hoje o mundo mudou. Surgem pais, avós, pais adotivos e tantos outros, que não mães biológicas, que exercem a função da maternagem, ou da parentalidade, com tanto prazer e dedicação, que só podemos rever continuamente esses antigos conceitos. O amor entre os que cuidam de uma criança e ela surge através dos vínculos inesperadamente fortes que se desenvolvem nessas relações. Por sua intensidade, eles surpreendem e deslumbram quem os vivencia, por serem sentimentos que nunca haviam sonhado ou planejado experimentar.  Por outro lado, um contingente cada vez maior de mulheres escolhe não ter filhos. E com frequência, muitos de nós ainda tendem a confundir escolhas individuais com imperativos biológicos ultrapassados, julgando em silêncio anormal, ou estranha, a mulher que exerce a sua liberdade de escolha e opta por não ceder às, até pouco tempo atrás, ditas “leis da natureza”.

Como ficam interessantes conceitos antigos, quando revisitados, à luz de novas formas de pensar, não é? Será que é possível seguirmos criando novas tentativas, como sempre foi feito, de catalogar os procedimentos humanos de acordo com os interesses da época?  Ou quem sabe conseguiremos finalmente, em nossos dias, admitir que a relatividade e o particular são atributos do ser humano? É através da imprevisibilidade de nossos comportamentos e de nossos sentimentos que exprimimos nossa liberdade e nossa singularidade. Como ouvimos com frequência cada vez maior, cada um de nós é único e seria bom nos lembrarmos disso. Não só em relação a nós, mas também aos que nos cercam.  Hoje, uma mulher pode desejar não ser mãe: trata-se de uma mulher normal, que simplesmente exerce sua liberdade. À ideia de uma única “natureza feminina”, seria bastante interessante se preferíssemos a de uma multiplicidade de experiências femininas, todas diferentes. Neste domínio, cada mulher merece ser vista como um caso particular e peculiar.

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