De infidelidades e primeiras noites

A Dois
20.set.2016

 

A vida é cheia de escolhas. Tomadas de decisão o tempo todo, menores ou maiores, nos trazem angústia, muitas vezes até sem termos consciência disso. Principalmente naqueles momentos em que tomamos decisões que vão contra o que sabemos ser o senso comum. Achamos que o certo é a forma de pensar da maioria das pessoas e muitas de nós se sentem inseguras e culpadas por tomar um rumo que contraria o pensamento dominante.

Muitas vezes, o tal senso comum é apenas uma ideia concebida em outros tempos e que, examinada à ótica dos tempos atuais, perde o colorido e o vigor. Algumas dessas ideias se tornaram completamente discrepantes em relação ao presente, mas ainda exercem influência sobre nós. Nesse ponto, é fácil notar como as mulheres ainda são as grandes vítimas de algumas máximas que não caíram em desuso, apesar de seu anacronismo.  Duas delas se destacam, pela força com que se tem mantido, década após década.  A primeira prega que uma mulher não faça sexo num primeiro encontro, ou afastará a possibilidade do relacionamento se desenvolver. A segunda afirma que a infidelidade masculina é menos grave que a feminina. E aí, o que dizer de coisas assim?

É claro que todos sabem que a primeira é uma orientação endereçada exclusivamente às mulheres. Como se unicamente delas dependesse o prolongamento de um relacionamento ou não. E quem pode imaginar um homem impondo-se tal regra de conduta? Com certeza, o inovador sujeito seria percebido por todos como alguém com sérias dificuldades em exprimir sua virilidade. Aqui, o que se afirma é que cabe somente às mulheres controlar suas pulsões. Mas hoje pode-se dizer que, na verdade, trata-se muito mais de uma sexualidade que se exprime fora de uma relação afetiva (ou que não se sobrecarrega mais de problemáticas, questões afetivas ou de relacionamentos) do que de uma “sexualidade impulsiva e fora de controle”.

O paradoxo é que a cultura atual aponta, ao mesmo tempo, veja só, para a mulher que não possua uma certa “espontaneidade sexual”.  Ou seja, que não adote para si os padrões atuais de liberdade sexual: quando o desejo se apresentar, ela precisa provar sua aptidão à sexualidade, quase que sua “normalidade” sexual.

Entre estas duas ordens contraditórias, a do “não fica bem para uma mulher ir para a cama na primeira noite” (é antiga, mas ainda tem seu público) e a “deve-se seguir suas pulsões” (mais moderna, mas também em vigor), o que se faz?  Uma escolha é necessária, mas o que importa, na realidade? Que garantia existe de que algo esteja “certo” ou vá “funcionar”? Pode acontecer que, nesse tempo estendido, pela recusa da primeira noite, se abra um espaço onde se desenvolva uma relação entre duas pessoas. Uma relação permeada por sentimentos, onde se estabeleça a confiança recíproca, onde a sexualidade poderá inclusive se desenvolver e enriquecer. Ou não, bastando para tal que um dos dois esteja fechado ao desenvolvimento de qualquer vínculo.

É claro que a historia erótica e relacional entre dois indivíduos não precisa somente de uma noite de negativas para se encher de sentido e confiança. Mas, por outro lado, imaginar que a qualidade da relação não se define pelo tempo de convivência, seria negar a existência das emoções que vem com os prazeres, os sentimentos que crescem com a intimidade. Não é o tempo que define a qualidade de um vínculo, mas a confiança depositada no outro.

E a infidelidade masculina, é menos grave que a feminina?  Essa é outra ideia que perpassa a cabeça das pessoas há muito tempo. É comum o pensamento de que  mulheres só tomam para si um amante quando estão por ele apaixonadas e então, forçosamente, estão em vias de abandonar seus maridos. Nesta visão, as mulheres fariam sexo guiadas exclusivamente por seus sentimentos, como se não possuíssem qualquer impulso sexual puro. Ao inverso, o homem infiel seria “isento” de sentimentos por sua amante, que seria sempre alguém com quem, como muitas já ouviram, “foi só sexo, não teve a menor importância”…  É ou não é uma visão bastante maniqueísta?

Se considerarmos a infidelidade masculina menos grave, é bem mais provável que seja porque a sociedade tem medo da fraude feminina: uma mulher infiel pode fazer um homem reconhecer como seu e criar filhos que não são seus. E isso parece ser o que mais inquieta o ser masculino: a traição na origem de sua descendência. Ela alimenta a angústia do homem e define o peso do castigo da mulher quando ela desconsidera a ordem estabelecida.

A questão da nossa origem estar à mercê do desejo sexual feminino tem trazido, como consequência, que tal desejo não cesse de inquietar as mais variadas culturas e acabe por condicionar os excessos e a violência de seus julgamentos. E a nós, mulheres dos tempos atuais, resta o consolo de pensar que, apesar de ser assim há muito tempo, o acesso à informação faz com que possamos, como nunca antes, lutar por uma revisão de tantos preconceituosos conceitos…

 

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