Incontornáveis surpresas

Comportamento
30.set.2014

Cada um de nós possui, à sua volta, seu próprio e singular universo privado. Nele transitam, ao longo de nossas vidas, pessoas a quem nos ligamos de formas diversas. A algumas, vamos nos ligar por laços da simpatia mais superficial e a outras, pelos da intimidade das relações a dois.

O desaparecimento de uma pessoa próxima e querida, alguém cuja vida se ligou à nossa muito fortemente, faz surgir em quem ficou a sensação do arrancamento de um pedaço de si. É uma vivência que em breve se mostrará irreparável.  Ou seja, logo vamos nos dar conta de que os escolhidos do nosso mundo, ao partirem, levam consigo parte de nossos próprios mundos. Isso e mais a certeza da impossibilidade de substitui-los plenamente nos faz perceber, de forma única e clara, o que é a finitude. A partir daí, o momento passa a ser uma espécie de “trailer” do que está por vir para nós também.

É assim que a perda de um desses nossos companheiros de vida acaba sendo uma maneira da experiência de morte se tornar acessível a nós, que permanecemos vivos. Como assim? Experimentamos o fim de um pedaço de vida compartilhado. E ao perdermos mais e mais pedaços, vamos nos dando conta, cada vez mais, de quão breve vai se tornando a nossa própria vida.

Freud nos revelou que entramos em colapso total quando a morte atinge alguém a quem amamos – um pai, mãe ou parceiro de matrimônio, irmão ou irmã, filho ou parente próximo. Nossas esperanças, alegrias, desejos e prazeres parecem ter-se ido com eles. E também avisou que não nos consolaremos daquela perda. Como fazê-lo, se sabemos que não preencheremos o lugar daquele que perdemos? Cada morte é a perda de um mundo, e é uma perda definitiva, irreversível e irreparável. A ausência desse mundo é algo que não terminará enquanto  durar nossa existência.

Nessas ocasiões, a lembrança da perda teima em não ir embora. Ao contrário, se instala pesadamente assim que abrimos os olhos, logo pela manhã. É como uma nuvem sombria que tudo encobre. Mas quem nunca se sentiu assim?? Você acorda e, num tempo a seguir que parece menor que um segundo, um manto de tristeza e desconforto se instala. No instinto, você procura rapidamente em sua mente o que se passa, o que não vai bem com você. A sua cognição funciona, e você localiza no instante seguinte o motivo de seu desgosto. Só que, quando a razão de tudo isso é a morte de um ser querido, não há nada que se possa fazer para afastar a dor.  Só esperar passar. E isso deve demorar bastante, fazer o quê.

Aí você se faz muitas perguntas, já que a sua mente continua a trabalhar ininterruptamente, noite e dia revirando o mesmo tema. O que alguém pode fazer com tamanha dor? Será que vão conseguir lhe acolher? É possível ter consolo e carinho? Quantos conseguirão conviver com a sua dor? O que faz com que algumas pessoas lhe ofereçam amparo, simplesmente estando ao seu lado, e outras não?

E como lidar com tantas surpresas que acompanham o evento da perda em si? Há que se tentar compreender que cada um dos que nos restam tem lá suas singularidades. As pessoas são o que são, não o que precisaríamos que fossem. Não são moldadas a partir de nossas necessidades. Este é mais um daqueles momentos na vida cheios de surpresas: recebemos afago de quem não tínhamos expectativa, não vemos eco da dor onde contávamos ver.  Vivemos o desafio de ter que aprender, de repente, a lidar com o próprio desamparo. E com o agora onipresente medo de ser o próximo.

Os que já viveram muito e viram partir muitas pessoas próximas, ainda nos anunciam a experiência solitária que é assistir ao despovoamento do seu mundo pessoal – inimagináveis e incontornáveis, as surpresas da vida.

 

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