A nova ousadia amorosa

A Dois
19.fev.2020

Dia desses falávamos das incertezas amorosas do cotidiano moderno. Na verdade, somos um pouco prisioneiros de nossas fantasias de onipotência, já que costumamos nos dizer que nossa vida afetiva só depende de nós, de nossas boas decisões e de uma “boa gestão” de nossos sentimentos. Tendemos a acreditar que, assim como aprendemos  a administrar bem nossa vida social, profissional e familiar, deveríamos ser capazes de gerir perfeitamente nossa vida amorosa. Mas muitas vezes, não é assim que as coisas se passam. Queremos encontrar formas adequadas de conduzir nossa vida sentimental, mas não levamos em conta que vivemos atualmente uma “sentimentalidade” caótica, que não segue nenhum principio previamente estabelecido.

Após o trabalho de sexualização do corpo e das relações amorosas iniciado pela revolução sexual e completado pela mídia nas últimas décadas, a ousadia amorosa hoje deixou de ser sexual e passou a ser emocional. Segundo Eva Ilouz, ela consistiria na recusa ao papel central da sexualidade em nossa vida amorosa e, ao mesmo tempo, na coragem de se assumir o desejo de amar, mesmo quando este tema possa parecer à maioria de nós hoje um tanto “brega”.

Para a socióloga, o atual “brega sentimental” passa por ter uma crença inabalável no amor, além de não ter vergonha de mostrar os sentimentos, nem de ser sentimental. Numa cultura que celebra tanto a autonomia, mostrar-se  sentimental costuma ser visto como um sinal de inferioridade. Além de ser algo completamente em desuso, desqualifica seu portador, tornando-o “um fraco” aos olhos da maioria. “Brega” será, aqui, uma sentimentalidade que ousa se mostrar. Ela traduz a esperança de um amor em forma mais pura, ao qual muitos homens e mulheres aspiram, só que em segredo.

O campo emocional entre duas pessoas que se amam se assemelha a uma zona imprevisível, onde duas subjetividades se encontram. É ali que se aprenderá a delicada negociação da interdependência de uma com a outra, tentando preservar, ao mesmo tempo, sua autonomia.

Por outro lado, o amor nos foi descrito como algo que nos surgirá como uma espécie de convicção ou crença, que se segue a uma “revelação súbita”. Deve nos provocar uma conversão imediata: “descobri que amo fulano/a”! A partir desse momento, uma mudança fundamental nos ocorreria. Sério??

Ao nos tornarmos mais realistas, percebemos que nem o amor é uma revelação intangível de algo que chega para ficar, nem é assim que os sentimentos atuam sobre nós. Sentimentos nos surgem e nos arrebatam.  E nos deixam confusos, ambivalentes, inseguros. Para tornar tudo ainda mais complexo, com frequência nos vemos em relações onde nossos sentimentos oscilam.

O desafio é enfrentar a inquietude, a ambivalência e admitir para si a presença de um certo desconforto, certamente ligado aos medos comuns a todos, em maior ou menor grau. Vencer os medos, escondidos ou não, é o passo essencial que vai permitir ao amor se instalar.

Da mesma forma que nomeia o “conformismo amoroso”, Eva Ilouiz estabelece que a nova “audácia amorosa” consiste em se obter os meios necessários para se viver historias que “vão nos fazer sair de nós mesmos”, ou seja, de nossa forma de conceber nosso pequeno universo. Ela sustenta que o amor não deve ser mais definido a partir do “encontro de duas subjetividades autônomas”, e sim pelo fato único de duas pessoas conseguirem se admitir protagonistas de um processo em que vão se tornando mutuamente dependentes. Ao abandonar seus medos, vão progressivamente aceitar e reconhecer a necessidade um do outro, deixando ao amor terreno fértil.

Simples assim, e nem é preciso ter saudade de outros tempos…

simone_sotto_mayor

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