Pais movidos a culpa

Filhos
03.mar.2015

Quem, como eu, já ouviu alguém se definindo assim: “eu sou uma pessoa movida a culpa”? Parece até uma brincadeira, dito assim, mas é uma coisa forte, não é? E, para quem não faz nem ideia do que estamos falando, o que seria alguém movido a culpa, exatamente??

Para começar, vamos ver se existe algo de positivo nesta afirmação. Por uma certa ótica, pareceria que sim: sentir-se culpado em relação a alguém, hoje em dia, já é sinal que a pessoa é capaz de sair de si e perceber o outro… Somente saindo de nosso “isolamento narcísico” original é que temos a chance de promover uma sociedade mais farta em encontros e vínculos consistentes.

A culpa excessiva, entretanto, aquela de alguém que nunca se sente fazendo o suficiente, nem sendo suficientemente bom, ou ainda, com a sensação de que sempre fez algo ruim ou muito errado, é destrutiva. Ao se instalar e permanecer no íntimo de alguém, o sentimento de culpa reforçará uma fantasia de que “não há salvação” para si: culpada, a pessoa estará sempre pronta a pedir desculpas, julgando ter cometido mais um equívoco. Em permanente desconforto consigo, considera-se um desastre. Há até os que, secretamente,  consideram-se “seres inviáveis”, o que lhes impele a passar a vida fazendo de tudo para provar aos que cruzam o seu caminho que merecem a graça de estar vivos.

Imaginemos agora que adultos com este perfil se tornem pais ou mães. O que acontece?? Sem noção de seu valor e com imensa necessidade de provar ao mundo a que vieram, eles acabarão por dar aos filhos uma excelente oportunidade de dominação. Que será prontamente exercida, com maior ou menor vigor.

Dizemos prontamente porque, na eventualidade de um pai ou uma mãe se sentir muito culpado/a frente aos filhos, dificilmente não será por eles manipulado. A manipulação costuma começar na transformação da pessoa em “função”. O que isso quer dizer? Que os pais, de maneira geral, existiriam apenas para atender à função de prover as necessidades de seus filhos. Como consequência imediata, “caberia” aos filhos tentar controlar ao máximo os passos de seu genitor/a, já que ao mesmo será negado o direito, dentro desta ótica perversa, de conduzir-se  por conta própria.

Neste quadro desviante e patológico, a pessoa pode até gerir sua vida profissional com maestria, mas será sempre lembrada, em casa, que é um ser deficiente, um eterno devedor emocional, alguém que nunca conseguirá quitar sua “enorme dívida” com os filhos. Pessoas de boa vontade e fé no ser humano serão, como de costume, as vítimas preferenciais.

Tal descrição pode até parecer extremada ou improvável de acontecer mas, infelizmente, não é. Por experimentarem um sentimento de culpa forte e indefinido, alguns pais não se sentem, por exemplo, à vontade para usufruir do que constroem em vida. A complementar este quadro, existem filhos que não se concentram em seu próprio esforço, preferindo, de antemão, contar com o patrimônio de seus pais, avós, etc. Tem para si a noção equivocada de que tudo já lhes pertence, “é só uma questão de tempo”… Assim, o tal patrimônio pertenceria aos filhos, mas estaria  “em consignação” com os pais (ou até avós).

Esta atitude de “é meu, mas por acaso está nas mãos de alguém”, dá aos filhos a convicção, para eles legítima, de agir como se senhores de tudo fossem. Daí o direito “básico” de saber exatamente o que os pais fazem e como andam gastando o dinheiro “deles”.

Isto me lembra um amigo bem humorado, entrado nos sessenta, que costumava se deleitar invertendo esta lógica. Percebendo as tentativas desesperadas e mal-disfarçadas dos filhos de controlá-lo, sempre que estava prestes a fazer um gasto maior dava risada, dizendo: “puxa, agora fico até feliz quando me lembro que já são ‘eles’ que estão pagando, assim não preciso mais economizar tanto!”

Na verdade, eu nunca soube se ele havia mesmo elaborado a frustração que a atitude dos filhos lhe causava ou se apenas tentava atenuar um pouco o que via. De qualquer forma, o antídoto para tal situação será sempre, em primeiro lugar, conseguir parar de negar a existência de um fato tão desagradável, admitir sua existência e perceber o quanto toda a dinâmica familiar encontra-se prejudicada. A seguir vem o mais difícil, para os culpados crônicos: vão precisar aprender a sentir empatia por si mesmos. E depois, ainda passar a mostrar-se sendo quem são, perdoando-se seja lá do que for.

Conscientes finalmente do quadro disfuncional que colaboraram para criar à sua volta, os pais “movidos a culpa” podem, depois de todo este processo, até vir a reivindicar o controle da própria existência, algo que provavelmente nunca exerceram de fato.

 

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