“Anamia”: anorexia e bulimia

Mulher
16.maio.2017

 

Imagino que só quem tem alguma familiaridade com o tema saiba o que quer dizer “anamia”. De minha parte, soube bem recentemente, ao tomar conhecimento de que, em 2015, uma emenda contra a incitação à anorexia foi adotada pela assembleia nacional francesa. Ela prevê um ano de prisão e uma multa elevada para quem exercer “o ato de provocar uma pessoa a buscar uma magreza excessiva”.

Esta disposição foi concebida, veja só, para ser uma forma de lutar contra os sites pró-anorexia que pululam na internet e que personificam esses distúrbios alimentares, chamando-os pelos apelidos carinhosos de Ana (anorexia) e Mia (bulimia). Nem todos os sites desse tipo incitam diretamente jovens mulheres a emagrecer ou a passar fome, mas muitos fazem a apologia dessas doenças, consideradas por eles apenas “um estilo de vida”. Que tal?

Passado o susto pela gravidade dos fatos (não tinha conhecimento de que tais distúrbios poderiam ser identificados como “estilo de vida”!), certa de que estou diante de uma esquisitice dos nossos tempos, começo a pensar que muitas adolescentes devem encontrar, sim, nesse tipo de “comunidade”, uma identidade e mesmo uma “causa”. Fico sabendo que a tal medida despertou muitos protestos por parte de jovens em seus blogs pró anorexia, pois a lei visa acabar com seus “fóruns de debate”, lugares virtuais onde meninas se ensinam a conviver com fome crônica e coisas do gênero.

No âmbito do projeto batizado de “Anamia”, os pesquisadores, todos especialistas em saúde pública ou ciências humanas, identificaram cerca de 60 sites franceses de trocas de experiências e discussões sobre anorexia e bulimia. Interessados em compreender melhor os distúrbios, ao final os pesquisadores chegaram a ponderar se as medidas punitivas não levariam ao prejuízo do estudo dessas doenças. Lamentaram  que os sites fossem o espaço onde as meninas revelavam com mais clareza os sentimentos que as acompanham ao adotarem condutas de restrição alimentar extrema. Mesmo não sendo ainda tão importante quanto o combate à obesidade, a batalha contra as duas desordens alimentares vem se tornando um caso de saúde pública.

Entrar em contato com esta realidade me trouxe recordações de um passado não muito distante quando, por alguns anos, tive a experiência de lidar com adolescentes anoréxicas. Foi quando vi de perto a complexidade do tratamento requerido nesses casos: mesmo uma equipe multidisciplinar, especializada em transtornos alimentares, precisa lutar muito para trazer de volta uma pessoa que tem a imagem de si tão distorcida. Anoréxicos enxergam o seu “eu” corporal de forma absolutamente peculiar e única. Na base de tudo estão muitos conflitos psíquicos e sofrimento emocional intenso. Alguém começa a se perder de si, mergulhando cada vez mais fundo na angústia e na depressão. Considerar práticas de privação alimentar extrema apenas um singelo “estilo de vida” é uma atitude no mínimo inconsequente, já que falamos de um distúrbio que, em seu mais alto grau, pode levar à morte.

Abandono as reflexões que minhas lembranças geraram e volto aos nossos dias, me indagando se, sendo nós magras, gordinhas ou obesas, jovens ou nem tanto, será que uma lei poderia nos ajudar, caso precisássemos nos libertar de um “ideal de ser” inatingível? Acredito que ninguém, de sã consciência, poderia nos afiançar isto, não seria verdadeiro. Mas uma lei é sempre uma tentativa de abordagem do problema numa escala muito maior que o do universo individual. E a criação de uma “norma corporal” – neste caso, a recusa da magreza extrema – tem um mérito indiscutível, que é por na pauta das discussões algumas das novas e ainda obscuras doenças do mundo ocidental.

simone_sotto_mayor

 

 

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