Contra o assédio

Mulher
30.maio.2017

Em numerosas regiões do mundo, nascer mulher ainda é sinônimo de perigo extremo. Nos cantos do mundo onde a insanidade toma o poder e tenta matar o pensamento, em geral, tenta-se também destruir as mulheres, fazendo delas seres inferiores e privados de direitos. Propriedades dos homens, são vistas como criaturas impuras e passíveis de inspirar a outros, que não seus donos, desejos condenáveis. Devem, por isso, dissimular seus corpos.

Em países ocidentais, afastadas as ocorrências extremas de estupros individuais ou coletivos, a sociedade começou recentemente a admitir que as mulheres não tem, por enquanto, o simples direito de viver em paz. Portadoras de um sexo que talvez remeta alguns homens a apavorantes fantasmas de castração na infância (quem não ouviu falar em “vagina dentata?”), fato é que as mulheres acabam por atemorizá-los, ao mesmo tempo que os fascinam. Elas adquirem, no imaginário de muitos deles, um status ambíguo de seres desvalorizados e, mesmo assim, desejáveis. Tal contradição leva estes homens a transformá-las, no plano da sexualidade, em objetos:  “você me é inferior mas, como não posso deixar de te desejar, eu faço de você uma coisa, que eu utilizo e desprezo.”

Este “modus operandi” psíquico direciona ao assédio, um importante ataque à sensibilidade e à dignidade, que as mulheres continuam a sofrer e a suportar no espaço público. É lá que um desconhecido qualquer, não sendo capaz de colocar seu desejo de igual para igual e arcar com uma recusa, se sente autorizado a violar seus ouvidos com obscenidades ou seus corpos com contatos físicos não permitidos. Isso as deixa apavoradas, humilhadas, envergonhadas e reféns do sentimento de estarem expostas a uma violência degradante, , impotentes e sem nenhum recurso.

O assédio já foi capaz de levar mulheres a vivenciarem seu corpo como um inimigo e fazer com que, para escapar aos olhares, se escondessem ou se “disfarçassem” em vez de apenas se vestir, renunciando à feminilidade. Isso acontecia até pouco tempo atrás. Agora, as mulheres usam as roupas que acham que devem usar, o que já é uma conquista. Mas pagam o preço das agressões e de serem responsabilizadas por “provocar” os homens, veja só. Este é o ponto da discussão em que estamos hoje, em nossa sociedade.

A vivência do assédio pode causar uma ferida particularmente destrutiva na puberdade, quando os corpos em transformação passam a despertar o desejo dos homens, que lhes dirigem olhares invasivos, indecentes até, tão carregados que são de desejo. As meninas precisam, nessa fase, que uma mulher adulta as ajude com conversas na questão de como lidar com o desejo que despertam. Algumas mães, entretanto, por imaturidade ou desinformação, não abordam o assunto. Outras até veem esse tipo de evento como uma espécie de vitória, estimulando na menina a fantasia de “ter o homem a seus pés”. Talvez acreditem que isso vá apressar a chegada de um bom parceiro amoroso, mais para príncipe do que para predador. É o predador, entretanto, que se apresenta e as meninas levam a pior, que o digam as estatísticas de gravidez no início da adolescência, um verdadeiro “case” em nosso país.

E o que podem obter as orientações, tendo em vista uma realidade onde, aproveitando-se de sua fragilidade e perplexidade, um predador pode deixá-las sem ação, imobilizando-as por meio de uma palavra ou um gesto? Na verdade, pode-se obter bastante se, ao ensiná-las a se defender, incluirmos também a noção de que uma defesa coletiva é possível. O assédio é uma prática perversa que, como toda prática perversa, precisa do segredo para ter a garantia da impunidade. Qualquer um que testemunhe um assédio e decida intervir, tem o poder de detê-lo. Todas as mulheres já passaram pela experiência do assédio e todas dizem ter dificuldades de reagir: é preciso abandonar nossa posição de presas e aprender a reagir, gritar. A maioria das mulheres acaba dando muitas vezes ao agressor o benefício de sua própria dúvida: será que interpretamos mal suas palavras ou seus gestos? Com frequência, precisam de algum tempo para responder a outra pergunta que lhes surge:  será que, de alguma forma, o provocamos? Reagindo, será que não vamos tornar as coisas piores? “Ele vai me dizer coisas agressivas, gritar comigo, dizer que sou pretensiosa ou mentirosa”…

Um exemplo interessante vem da França. Em 2014 surgiu por lá uma ONG chamada “stopharcelementderue”, (pare o assédio de rua) com ações em diversas grandes cidades francesas. O objetivo tem sido ajudar as mulheres a aprenderem a reagir ao assédio nas ruas.  Sabendo como a maioria das mulheres pensa e age, a ONG faz campanhas dentro de escolas de ensino médio e de empresas, para explicar a diferença entre paquera e assédio, explicitando bem as noções de respeito, de consentimento e de insistência. E falam de pesquisas que mostram que, neste tipo de ocorrência, as pessoas tem se mostrado cada vez mais solidárias: um grito pode trazer ajuda.

Fazer um elogio, propor um café, por que não? Mas se as mulheres não são receptivas, é preciso parar. Já é tempo de a humilhação e o medo deixarem de fazer parte do cotidiano das mulheres. Não é?

 

simone_sotto_mayor

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