Uma questão interessante revelada ultimamente por nossos melhores historiadores sociais é que o único laço social que nos últimos dois séculos se aprofundou , intensificou e enriqueceu foi o que une as gerações no seio da família. Surpresa?? Pois é, imagine só, somos menos medíocres e rasteiramente “materialistas” do que nós mesmos nos habituamos a pensar…
Frequentemente desfeita, recomposta a seguir numa diversidade enorme de formas , situada fora do casamento muitas vezes, a família tem se tornado, veja só, bem mais autêntica e até mais atraente em sua história, por sua natureza diversa. E o paradoxo da família moderna, dizem os estudiosos do assunto, é que é nela que sobrevivem (e se aprofundam) as formas de solidariedade de que o restante da sociedade, hoje dominado pelas normas da competição e da concorrência, quase não tem mais conhecimento.
É diante dos nossos próximos, daqueles a quem amamos, que espontaneamente nos disponibilizamos a “sair de nós mesmos,” em atitude solidária. A seguir, por extensão, estaremos aptos a fazer o mesmo diante dos demais humanos. Sem perceber estamos, desta forma, contribuindo para resgatar um valor esquecido por nossa sociedade. Uma sociedade que, diga-se de passagem, incentiva o tempo todo tendências opostas, individualistas.
Estudiosos do assunto vem há anos assinalando que, se olharmos para as relações entre o universo público e o privado em nossa sociedade ocidental, veremos que, nas últimas décadas, estamos vivenciando uma total reviravolta. Eles chamam a atenção para o que consideram “o fenômeno histórico mais importante desses últimos anos:” sem que nos déssemos conta, dizem, passamos progressivamente “das famílias a serviço da politica” (como foi o caso, por ocasião de tantas guerras ao longo de séculos) a uma “politica a serviço das famílias”. Em vez de singulares ou isolados, os problemas individuais ganharam o máximo de importância que poderiam ter, e passaram a ser questões universais, comuns a todos os humanos.
É assim que, hoje, para a imensa maioria das pessoas, a verdadeira meta da existência, que lhe dá “sentido, sabor e valor”, encontra-se basicamente na vida privada. Ao examinarmos a historia da família moderna, compreendemos com maior clareza a que os pesquisadores se referem. A vida amorosa ou afetiva em todas as suas formas, os laços que criamos com os filhos ao longo do período em que os educamos, a escolha de uma atividade profissional enriquecedora também no plano pessoal, a aspiração à felicidade, e ainda as preocupações com a doença, o sofrimento e a morte, passaram a ocupar um lugar muito mais importante na mente das pessoas do que as considerações na esfera da política.
Em tempos anteriores ao que vivemos, era o “sagrado” que dava sentido à existência. Pelo que era considerado sagrado, valia a pena se sacrificar. O que consideramos hoje sagrado, o que vale nosso sacrifício? E ainda, quais são e onde estão nossos maiores valores? Quando todos os valores passaram por tão ampla desconstrução, como a que vimos presenciando nas últimas décadas, onde pode estar este sagrado?
A resposta encontrada pelos estudiosos do assunto é: se todos os valores foram desconstruídos, “sagrada” passou a ser a própria família. Lá é o lugar onde se encontram aqueles poucos que nos são próximos e que amamos, sendo eles os que justificam qualquer sacrifício de nossa parte.
Tudo isso, é claro, aponta para o crescimento do valor da intimidade, da forma como vem se apresentando na sociedade em que vivemos: na família, que passou a ser “um tudo”. Este fato, entretanto, alertam os pesquisadores, não deve ser visto como um sinal de recolhimento individual ou de um encolhimento de nossa participação no mundo mas sim, ao contrário, um expressivo potencial do alargamento dos horizontes de cada um de nós. Estaríamos participando do surgimento de um nova forma de humanismo, e não de um desvio para o egoísmo e para a maior desagregação social.
São correntes de pensamento agradavelmente animadoras, que já comentamos aqui em outro texto e que se ampliam, encontrando cada vez mais adeptos.
Uma boa notícia de se repassar, em tempos em que uma certa desesperança teima em dar o tom de todas as conversas.