Recentemente, numa conversa entre amigas, ouvi alguém afirmar: “a violência existe em todos os casais”. Como assim?? Era, no caso, uma referência às minúsculas violências cotidianas que surgem no morar junto e de que somos todos por vezes atores, sem que nos demos conta. Detalhes difíceis de serem identificados num primeiro momento acabam por se tornar intoleráveis, dizia alguém que se confessava com propensão a assimilá-los como agressões.
E de que, exatamente, falavam as amigas? Discutiam sobre as banalidades universais das convivências. Violência seria, afirmava uma, a forma com que alguém empurra o parceiro para ter acesso imediato ao lavatório, enquanto ele escova seus dentes. Ou, sugeria outra, o fato de um interromper distraída e seguidamente o outro que fala, para fazer uma pergunta qualquer fora do assunto. Ou, até mesmo, lembrou alguém, a maneira como um atende ao outro no telefone. Ao final, verificando que todas tinham lá seus registros, chegaram à conclusão de que se tratava não exatamente de agressões, mas de pequenas rudezas do dia-a-dia, que se tornam bem menos graves quando apontadas na hora. Houve consenso em relação à necessidade de deixar claro o quanto aquilo aborrece, ou, a algumas, violenta.
Mas, muitos hão de pensar imediatamente, vamos passar a vida a nos queixar dessas miudezas? Será que somos obrigados a transformar tudo numa grande chatice ou DR? Deve haver alguma solução para um convívio estreito que seja mais prática e eficaz, não é?
A armadilha, já anunciam até ditados populares, está em querer ter sempre a última palavra. E é verdade, não se pode vencer todas. Mas veja que interessante: como toda relação se estabelece numa base de poder, a vitalidade do casal dependeria da aceitação de um tipo de convivência onde o poder possa passar constantemente de um a outro, conforme propõe Anne Sauzède-Lagarde. Terapeuta familiar, ela diz que é saudável e fortalecedor para uma relação a dois o compartilhamento e a alternância de poder. Na prática, porém, questões de hierarquia estão entre as maiores fontes de conflitos dos casais e, portanto, não deve ser tão fácil assim chegar lá. Mas é uma excelente proposição, não é?
E aí, será possível distinguir batalhas insignificantes daquelas que, com certeza, acumuladas, envenenarão a relação? Algumas cenas de violência ordinária, mas já bastante comentadas, poderiam ser rapidamente listadas. Por exemplo, ignorar o parceiro, não se dirigir a ele, esta é uma atitude que “flerta” com o menosprezo pelo outro. Não comentar com o parceiro nada de seu trabalho, de seu dia a dia, também pode ser uma tentativa de negar sua existência. Alguns casais se comunicam aos gritos e choro, mas isso não quer dizer que o que grita seja o mais forte e que comanda o jogo, especialmente se o outro reagir com o silêncio.
Em geral, é sempre o mesmo parceiro que quer colocar o poder sobre o outro, mas esta não é necessariamente uma investida agressiva. E, apesar de o assédio moral estar em voga hoje, nem todas as violências psicológicas evoluirão para um assédio. Especialmente as apontadas aqui, que nitidamente são menores, partem simplesmente de diferenças educacionais, e tenderão a permanecer assim a vida toda. Só contribuem para tornar o relacionamento sem cor e desinteressante.
A gama de possibilidades de um relacionamento vir a falir nesses tempos de individualismo é muito grande. A impressão é que, sem tender para enxergar em tudo “violência”, estamos mais é diante de um cenário onde faltaram aulas de respeito e apreço que são, inevitavelmente, devidos ao outro. Aí torna-se cada um por si, e os deuses contra todos, como dizia um velho amigo…