Nossas tias Danielle

Comportamento
26.jan.2016

Pouco tempo atrás, uma jovem chamou minha atenção para um tema que não havia considerado até então. Fazia muito, disse-me ela, que observava idosos à sua volta, “chantageando emocionalmente” os familiares mais próximos. Em seu grupo familiar, comentou, haviam ocorrido situações que causaram grande desconforto emocional nos filhos adultos do idoso. A intervenção de um psicoterapeuta fora necessária para que conseguissem administrar melhor  este tipo de evento.

A jovem, neta do idoso em questão, me indaga: mas é sempre assim que as pessoas envelhecem? Este tipo de “relação cruel” é o que se pode esperar no fim da vida de nossos parentes, antes tão queridos? E, se este não é o comportamento padrão dos idosos, como é possível colocar um limite nessa situação, sem correr o risco de piorar de fato a já frágil condição de saúde do idoso?

Decidi trazer a questão para nossa reflexão: seriam os idosos um grupo de pessoas especialmente manipuladoras, como tinha a impressão a atônita jovem? Iremos, então, com o tempo, todos nós, nos transformar em pessoas propensas a chantagear emocionalmente nossos familiares, sobretudo os mais próximos e devotados, disseminando sentimentos de culpa e medo à nossa volta? Estariam, como consequência, nossos parentes futuramente fadados a se submeter ao nosso jugo, por medo de nos causar algum mal real? Em suma, e saindo do particular para a questão mais ampla: será possível antecipar a morte de algum velhinho, ao não ceder às suas eventuais tentativas de “chantagem”??

Devemos esclarecer logo que alguns idosos podem até ter a intenção de tentar chantagear, mas isto não quer dizer que terão sucesso em sua empreitada. Primeiro, porque os que agem assim, sempre devem ter sido indivíduos com padrões de relacionamento onde uma boa dose de manipulação tinha lugar garantido. Pessoas manipuladoras não deixam nunca de sê-lo, a menos que tomem consciência de sua condição e decidam fazê-lo. Mas é difícil crer que adultos com um padrão “não manipulador” simplesmente passem a se comportar assim, com a idade. Esta é uma forma de interagir com os outros como muitas, e que, a tal altura da vida, já deve estar devidamente evidenciada. E os manuais de psiquiatria são unânimes quando avisam: ao envelhecer, nos tornamos caricaturas de nós mesmos. Querendo dizer que, com o avançar da idade, nossos traços imperfeitos, em geral, se acentuam.

Imagino que aqui já tenhamos uma boa noticia, pois podemos concluir que não há garantia de sucesso para os que se inclinarem a esta conduta. Pressupõe-se que, a tal altura, os familiares envolvidos já terão tido muitas oportunidades, ao longo da convivência de uma vida, de aprender a não se deixar manipular. Provavelmente, até bem antes da situação crítica se instalar.

Alguém ainda pode insistir no assunto, ao lembrar que, no caso de um idoso, o mecanismo da chantagem pode ser reconhecido por todos, mas os argumentos usados agora produzirão efeito, já que se trata de fatos passíveis de acontecer.  Ou seja, tais pessoas usariam situações até plausíveis para atenderem a seus intentos de controle e domínio de seus cuidadores.

Mas, novamente, como assim? A quem soará verdadeira uma ameaça do tipo  “se você não fizer isto ou aquilo, vai acabar me matando!!” Até porque, em geral, quem está com lucidez e força suficientes para fazer este tipo de “ameaça”, poderá até partir em breve, mas não será porque um ente querido deixou de atender a um capricho seu.

À jovem que conversou comigo e disse se sentir como se estivesse “sob a mira de um bandido armado”, digo que não se deixe intimidar por uma arma que não existe. Ao não acreditar na existência da “arma”, descobrirá que quem dá de fato poder a alguém que age assim, idoso ou não, não é o próprio, e sim quem o escuta e se faz refém.

É oportuno lembrar que pessoas muito controladoras gostariam de continuar a controlar os que a elas sobrevivem, e encontram, muitas vezes, mecanismos para isso. Seja deixando como herança sentimentos de culpa bem arraigados, seja dificultando aos herdeiros o acesso a seus bens materiais. Apesar de coisas assim soarem estranhas à primeira vista, acontecem com alguma frequência.

Toda esta conversa me remete a um antigo filme francês, chamado “Tatie Danielle” (“Tia Danielle: Perversa e Perigosa” – 1990),  onde uma velhinha perversa chantageia seus jovens sobrinhos até que desistam dela e contratem alguém para ser sua cuidadora. Só que a suposta protetora revela-se páreo duro no quesito “pequenas perversidades”. Como com perverso não há acordo, vencerá a mais perversa. O filme é divertido e até didático, e assisti-lo certamente ajudará na compreensão deste tipo de relação.

Concluindo, idosos não são angelicais e puros, tampouco nós, seus parentes, o somos. Somos todos simples humanos, sujeitos a erros e acertos, temos nossos pontos fracos e pontos fortes. E nenhum de nós está em busca da perfeição, espera-se. Assim sendo, há esperança para todos…

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