Olimpíadas

Comportamento
09.ago.2016

Domingo comecei a assistir à abertura das Olimpíadas, de início incrédula e temerosa, mas logo orgulhosa da beleza do espetáculo que minha cidade conseguiu montar. Tudo muito colorido e vivo, a vontade de fazer sobressair a alegria carioca, as equipes adentrando o Maracanã com um sorriso escancarado. Pergunto-me se o sorrisão era só para entrar no clima do tão decantado bom humor dos habitantes da cidade ou se é um indício de existir na atual olimpíada, de verdade, um desejo de congraçamento e boa vontade entre os povos, coisas de que andamos precisando muito. Enfim, o clima de entrada das equipes era de confraternização e isso me pareceu até mais bonito do que algumas alegorias escolhidas pelos anfitriões para representar a alma carioca ou brasileira. Para a maioria dos estrangeiros que por aqui nunca estiveram, não há muita diferença entre “Brasil” e “Rio de Janeiro”. O Brasil todo é mais carioca aos olhos do mundo do que supomos. Vivemos ouvindo bossa nova até hoje e, no carnaval, estamos todos no sambódromo.

Como sempre, há um monte de coisas que vão passando pela cabeça da gente o tempo todo, sem que nos demos conta. É aquele filme continuo que é exibido por nossa mente só para nós e que, se não prestarmos atenção, nem nos lembramos de tudo em que andamos pensando depois. Assim, imersa estava na minha versão particular de tudo enquanto assistia ao desfile das equipes e eis que, de repente, sou desperta de meu pequeno transe por algo inesperado. Entram no estádio os atletas de uma pequena equipe de um país desconhecido para mim, super sorridentes como os que os antecederam, só que todos, sem exceção, levam seus braços estendidos para o alto e, com seus celulares, filmam a plateia. Filmam a plateia? Sim, e a eles próprios com a plateia ao fundo. Na grande festa de confraternização, a plateia era tão atraente quanto os protagonistas do desfile. Tudo dependia do ponto de vista de cada um. Espectadores e protagonistas, todos tinham o mesmo papel naquele show de abertura.

Reparei nas próximas equipes que entraram e vi que diversos atletas faziam o mesmo, mas nas outras não era unanimidade, muitos preferiam se divertir e brincar entre si e para a câmera. Aí me lembrei de uma experiência curiosa e também marcante, na primeira vez que fui a um casamento onde havia uma equipe de filmagem. Até então, registros desses eventos familiares eram feitos somente por fotografias. Naquele dia, achei estranho como a filmagem conseguiu mudar, de imediato, o comportamento dos presentes. Acabou o clima espontâneo, as pessoas nitidamente se preocupavam se estavam bem o suficiente para aparecer no filme. Muitas ficavam paradas, constrangidas, quando o inconveniente refletor e as câmeras se aproximavam. Ficavam imóveis e mudas, como se posassem para uma fotografia, torcendo para a câmera lhes abandonar logo.

Daí em diante, casamentos e muitos outros eventos foram se transformando em pequenos espetáculos. Os participantes aos poucos viraram todos atores, protagonistas ou figurantes. Gerações cresceram frente às câmeras, cada vez mais desenvoltas. Hoje, quase não se crê que existiu a experiência se não tem um filminho. Não pretendo aqui especular sobre o que se perde e o que se ganha com os novos hábitos, pois parece que essas coisas são muito individuais. Eu sou uma que faz filminhos, também. Mas que houve um antes e depois a partir de então, certamente houve.

Fato é que, para mim, naquele momento da passagem do pequeno grupo de atletas, minha experiência foi especial. Sabe quando a gente compreende as coisas de uma forma definitiva, como quando se encaixa a última peça de um quebra cabeças? Entendi que ninguém poderia prever que um instrumento de comunicação pudesse extrapolar tanto sua função original e interagir com as pessoas quase como se fizesse parte delas. E é isto que aconteceu com os celulares, são quase parte de cada um de nós. Simplesmente agora é assim, e não tem volta. Só virão mais e mais novidades nesta mesma linha, e vamos assistir e participar. Quem viveu no mundo anterior, viu e viveu uma outra forma de estar no mundo que não voltará mais.

No dia seguinte, a impressão daquele momento ainda me perseguia. Fui assistir a um espetáculo teatral, era na verdade um concerto, havia uma grande orquestra no palco e foi muito aplaudida. O pensamento veio logo:  será que os músicos também, algum dia, ou cantores e atores, sei lá eu, vão passar a filmar a plateia os aplaudindo? Será que é nesta direção que as coisas vão evoluir? Impossível saber…

simone_sotto_mayor

 

 

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