Pequena história das toalhas de hotel

Comportamento
23.ago.2016

De uns anos para cá, por motivos profissionais, passei a viajar bastante. Logo vim a travar conhecimento com um pequeno tirano, inevitavelmente instalado nos banheiros dos quartos de todos os hotéis. Trata-se de um breve aviso dirigido aos  hóspedes. Invariavelmente encontra-se lá, à espera do desavisado viajante, pronto para lhe provocar uma perturbação emocional com direito a um rico mix de sentimentos:  culpa, impotência, revolta, não há como fugir.

Com pequenas variações, o tema é sempre o mesmo. Em minha última hospedagem, o texto era mais radical e reivindicativo, chamou a minha atenção. Dizia o seguinte: “A direção do hotel se mobiliza pelo futuro de nosso planeta. O desperdício de água é um crime ecológico e produtos químicos nocivos são despejados na natureza a cada lavagem de roupa. Ajude-nos a construir um futuro melhor utilizando as toalhas estritamente necessárias e, se possível, não apenas por um dia”.

Alguns dentre os que leem este texto já devem ter passado por situação igual. Com o tempo, o que era um sutil apelo à adesão, está se transformando numa convocação. E que já vem com acusações veladas. Neste caso, o hoteleiro adotou um tom autoritário, transformando um aviso que, por si, já é capaz de suscitar boas dúvidas na maioria das pessoas, numa imposição digna de indignação. É claro que, diante de tal apelo, dificilmente o pobre viajante não se sente de pronto constrangido. Não dá para usar as toalhas a que tem direito sem se sentir tolhido, culpado e responsável direto pela escassez de água do planeta. Sabe-se lá quantas pessoas já sofrem com a falta d’agua, e ele está ali, pronto a piorar a vida delas. Manipulado desse jeito, só resta ao infeliz questionar-se: sou só um ser insensível ou um verdadeiro criminoso?

No momento seguinte, é provável que consiga se recuperar desse primeiro impacto, refletir um instante e ousar dizer a si mesmo que, afinal de contas, pagou para ter direito ao conforto de toalhas secas e limpas. E prosseguir pensando que, por ter pago, tem inclusive direito de levar consigo todas as amostras de sabonete e xampu que encontrar pela frente. Porém, caso conclua seu solitário raciocínio com o argumento de que, no fim das contas, ali ninguém verá sua escolha, estará dando mostra inequívoca de que, apesar de todos as alegações que apresentou a si mesmo, ainda se sente envergonhado por sua intenção egoísta.

No dia seguinte, tudo outra vez: logo de manhã, o confronto decisivo com a tirânica mensagem. Em vez de acordar com direito a momentos tranquilos antes da jornada certamente estressante que o aguarda, o sujeito agora vai ter que  fazer suas opções. Vai usar a toalha de ontem, ainda molhada? Ou vai dispor da segunda, que está lá, mas é para ser poupada? E vai usar a mesma toalha amanhã? Vai jogar ou não a toalha no chão, ritual que o hotel pede que você cumpra para que saibam se você é ou não é uma pessoa engajada?

A vida pode se tornar um pequeno inferno mental quando se pensa em tudo e, ao mesmo tempo, no seu contrário.  Num simples gesto, duas visões de mundo, duas perspectivas morais totalmente opostas se abrem ao, a esta altura, desamparado viajante. Trata-se de um ser egoísta e detestável que pensa antes de tudo em seus pequenos prazeres? Ou de um louvável militante de uma nova humanidade, mais solidária e generosa? Ai, vontade de voltar para a cama…

A esta altura, o hóspede começa a querer entender as motivações do hoteleiro para aborrecê-lo dessa forma, perturbando sua estadia até mesmo dentro da intimidade do “seu” banheiro. As coisas tomam outro rumo em sua cabeça. Como ousam lhe dar lições de moral dissimuladas e fazê-lo sentir-se desconfortável com algo que deveria ser tão simples?  Por que tal “reviravolta de costumes”? E é aí que ele percebe que é bastante provável que, na realidade, a verdadeira motivação deste jogo manipulativo seja bem outra, e que hoteleiros apenas desejem diminuir sua despesa e aumentar seu lucro. Simples assim.

Instala-se um breve momento de revolta: mas que hipocrisia, que mentirada!  A ecologia, então, não passaria de um pretexto que vem bem a calhar? Que cara de pau! Apoiado neste novo ponto de vista, o hóspede se prepara para sair da segunda ameaça de crise em menos de 24 horas. Consegue finalmente dizer para si mesmo que, naquela manhã, utilizaria sem nenhum embaraço sua segunda toalha. Só que, tentando deter sua mão, um último pensamento parece sua consciência a lhe sussurrar: “Meu caro, o fato do hoteleiro ser um mentiroso não muda nada em relação ao que está em questão. Você precisa, você e você somente, por si mesmo, fazer uma opção moral”.

E foi assim que aquele banho acabou tendo um caráter mais penoso do que reparador, com o viajante exausto com todo esse pequeno drama, tão intensamente vivido antes mesmo do seu dia começar de verdade. Ele há de temer por sua próxima noite em um hotel, e nós aqui só podemos torcer para que tenha assimilado o passo a passo da sofrida e intensa experiência, a fim de se livrar da previsível sequência de sentimentos desagradáveis…

simone_sotto_mayor

 

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