Uma face da violência obstétrica

Filhos
31.maio.2016

Recentemente comentamos aqui, de passagem, alguma coisa sobre o enorme número de operações cesarianas em nosso país. Somos, simplesmente, os campeões mundiais na ocorrência deste procedimento. E por que? Seriam nossas parturientes mulheres diferentes, medicamente falando, das mulheres mundo afora?

Na verdade, não. Trata-se de uma questão cultural, que agora se sabe ter se desenvolvido a partir dos consultórios obstétricos. Pesquisa recentemente divulgada revelou que, no início da gestação, 70% das grávidas brasileiras pretendiam ter seu bebê de parto normal. O que as fez mudar de ideia?

Ao longo das três últimas décadas, brasileiras grávidas tiveram que ouvir de seus médicos e cada vez com mais frequência, que não lhes seria possível ter seus bebês de parto normal. Ou a mãe tinha a “bacia estreita” ou o bebê não estava “encaixado”, ou o “cordão umbilical estava enrolado no pescoço”, etc. Uma infinidade de argumentos foi apresentada às gestantes para demovê-las de seu intento inicial.

Ao que tudo indica, a maioria dos médicos não conseguia sentir empatia (ela, outra vez!) com suas pacientes. Não se colocando no lugar delas, não percebiam o quanto muitas se sentiriam frustradas, incapazes e incompetentes por não poderem realizar seu sonho de ter seu bebê de parto normal. Agindo assim, os profissionais colaboraram para ampliar o conjunto de atitudes que caracteriza a violência obstétrica.

Foi preciso que muito se falasse nas cesáreas sem necessidade feitas rotineiramente (e ainda esperar o dia da divulgação das estatísticas que nos colocam num desconfortável primeiro lugar mundial), para que fosse admitido o que todos sabiam: como iriam os médicos arcar com o prejuízo de deixar de atender pessoas em seus consultórios, para ficar à disposição de um bebê que, caprichoso, não tem hora para nascer? Mais prático seria programar algum dia na semana para operar as quase parturientes, grávidas prestes a concluir o período de gestação.

Admitido o fato publicamente e agora posto em discussão, uma série de alegações usadas por grande parte dos médicos para programar uma cesárea deverá cair em desuso. Finalmente, deixou de ser uma suposta insuficiência da mãe ou do bebê para ser uma questão econômica ou de logística do sistema médico hospitalar. A verdade, finalmente!!

Anos atrás, alguns profissionais chegavam a dizer: “Parto normal é parto cesáreo!! Parto normal é coisa primitiva!”… A discussão parece ter-se polarizado tanto ao longo dos anos que a tendência hoje é ter, de um lado, as cesáreas e de outro, o parto natural, completamente não intervencionista. O meio termo, o parto normal acompanhado por equipe médica, passível de procedimentos que tenham indicação dependendo do caso, tende a desaparecer. E, por incrível que pareça, quando existe, principalmente em hospitais públicos, tem sido, segundo relatos, palco frequente de violência obstétrica (nesse caso, humilhações, tratamento rude).

Discussões a esta altura acaloradas à parte, indagamos: e o bebê, como será que veria tudo isso, se fosse convidado a opinar?  Será que escolheria nascer quando tivesse cumprido até o final o ciclo biológico da gestação, ou preferiria o elemento surpresa? Afinal, alguém já pensou que susto deve ser estar quieto no seu canto e de repente ser arrancado? Bem diferente de estar no centro de um processo de transformação, que se dá em geral ao longo de algumas horas, em que as etapas se sucedem, comandadas simplesmente pela natureza.

O pior nessa situação é que as mulheres, neste sistema, perderam seu direito de escolha. Legítimo seria que escolhessem como gostariam de ter seu filho, desde que lhes fossem passadas todas as informações necessárias à tomada de uma decisão plenamente consciente. Não “conduzidas” a uma decisão, após serem induzidas a erro em seu julgamento. Aí sim, o profissional de medicina entraria para modificar a escolha da paciente, se houvesse uma justificativa médica para isto.

Ah, coisa boa é poder de verdade ter escolhas, não é?…

simone_sotto_mayor

 

 

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